Um vento na brasa e o fogo levanta: A Marcha e os povos tradicionais de matriz africana
A Marcha a favor da liberdade religiosa e contra a RE 494601 realizada no dia 08/08/2018 no Vão Livre do MASP na Av. Paulista, capital de São Paulo, organizada e impulsionada pela Comissão Afro Religiosa Òkàn Dìmó, Odara Produções, Ìwé ìmó, Olhar de um Cipó e Ijaxé contou com a participação de mais de 6.000 pessoas.
Concentração no Vão Livre do MASP em 08/08/2018.
foto: Pedro Neto
Para além do objetivo principal da Marcha, de oposição ao Recurso Extraordinário 494601 que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) e que “discute a validade de lei do Rio Grande do Sul que trata do sacrifício de animais em ritos das religiões de matriz africana”;
Para além da linguagem jurídica branca-eurocentrada, desde a Constituição Cidadã de 1988 e tantos outros marcos legais que por si só já atestam que podemos abater tradicionalmente em nossos territórios tradicionais de matriz africana;
Para além da romântica visão de uma “religião” ou “culto” que cada vez mais é expropriada, roubada, capitalizada e voga nas modas – do designer aos centros universitários;
Para além da velha política partidária que insiste em olhar em nós apenas votos, e quem sabe, talvez, corpos exóticos em impressos de campanha ou falas emocionadas em comícios eleitorais;
Para além do gênero de Lógunède ou se homem usa gèlè (pano de cabeça/torço);
Para além de tantas outras questões o que a Marcha nos ventou?
Marcha a favor da liberdade religiosa e contra a RE 494601 realizada no dia 08/08/2018 na Av. Paulista.
foto: Ras Akanni / Òkàn Dìmó
Assoprou com força que, apesar das perniciosas práticas do epistemicídio negro, conseguimos nos mobilizar em favor de algo. Aqui está a grandiosa vitória da Marcha, para fora: nos materializar, em quantidade, como sujeitos de direitos e para dentro: que estamos cansados das migalhas.
Vamos trazer o Bode para o lugar mais importante? Vamos parar de debater sobre o cheiro dele?
O Bode é o racismo! Podemos abrir mão em concordar ou discordar dos adjetivos do Bode. Estrutural, religioso, institucional, entre outros, mas não podemos mais ficar elucubrando somente sobre o cheiro dele. Intolerância, diversidade, igualdade, preconceito etc.
É o racismo, sem nenhum repouso ou pausa, que atua e difunde que não somos humanos. É o racista que nos coloca apenas como “mágicos”, “esotéricos”, “exóticos”, “religiosos”, “místicos”.
As práticas e conhecimentos tradicionais de matriz africana reafirmam a dimensão histórica, social e cultural dos territórios negros constituídos no Brasil dos quais a religiosidade e a religião – relação com o “sagrado” – são algumas de suas facetas, o que nos remete aos princípios do Decreto nº. 6.040/2007: "(I) reconhecimento das comunidades tradicionais, levando-se em conta os recortes raciais, de gênero, [...] e religiosidade e ancestralidade".
Roger Cipó, Felipe Brito, Bàbá Bruno Nascimento, Ìyá Omin Efun Lade Jiku, Thiago Ketu e Ìyá Ana Carolina d’Yemoja, alguns das(os) organizadoras(es) da Marcha na Av. Paulista em 08/08/2018.
foto: Johnny / Òkàn Dìmó
No Brasil, os chamados "terreiros", "roças", Ilé [1] [Ilê], Nzo [2] [Inzo], Àbàsà [3] [Abaçá] ou Egbé [4][Ebé], entre outras denominações utilizadas quando se refere à autoidentificação das comunidades tradicionais oriundas de diferentes contextos culturais africanos, e a interação com os povos originários e aos biomas locais, são importantes territórios de articulação, preservação e transformação dos valores civilizatórios dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana.
Mesmo assim, as comunidades tradicionais de matriz africana no Brasil foram reduzidas apenas para seus aspectos relacionados ao sagrado.
Assim, desde 2011, lideranças tradicionais de matriz africana do Brasil inteiro construíram o Plano de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades de Matriz Africana. Incluiu-se na Esplanada dos Ministérios os principais marcos civilizatórios presentes entre os povos tradicionais de matriz africana no Brasil. Um conjunto de modos de fazer, ser, pensar e se relacionar com o outro e com o meio ambiente para além da relação com o “sagrado”.
O Estado, o legislativo, o judiciário, o executivo e todos os seus agentes não darão conta, nunca, de nos compreender. Nossa visão de mundo e os nossos princípios civilizatórios – ancestralidade, identidade, circularidade, oralidade, alacridade, senioridade, respeito e manutenção aos biomas e meio ambiente, protagonismo da mulher negra, entre outros, não caberão nunca no sistema em que vivemos.
A proposta fundamental do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana é superar esse reducionismo a que foram relegadas as tradições africanas ao longo da história no Brasil, resumidas à sua religiosidade ou religião.
O conceito constitui ainda referência para o real enfrentamento ao racismo. Porque estende-se ao modelo democrático em que a ideia de raça é considerada politicamente e reforça o conceito de raça social em que o povo simbólico passa a contar com um equilíbrio e normas, valores e define um povo real.
O objetivo foi desvelar para o Estado e para a sociedade a sua real dimensão, os marcos e bases civilizatórias que compõem seu léxico, sem prejuízo das autoidentificações.
Neste sentido, não há pretensão de alterar a imagem de matrizes africanas que os povos tradicionais utilizam no Brasil e sentem-se representadas no seu cotidiano, muito menos de negar sua religiosidade, ao contrário, objetivamos apor as práticas ritualísticas como um dos diversos prismas, mas não o único.
Entre nós, usamos as denominações que quisermos. Para o Estado é Povo Tradicional de Matriz Africana.
Espero que a Marcha continue ventando e levante a brasa da política nacional para povos e comunidades tradicionais de matriz africana. Um vento na brasa e o fogo levanta!
Para mais informações:
- Marcha a Favor da Liberdade Religiosa e Contra o Re494601
- Plano de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (2013-2015)
- SILVA NETO. José Pedro da. Caderno de Debates Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana. Ministério da Justiça e da Cidadania, SEPPIR, PNUD/ONU. Brasília, DF, 2016. Link: http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/pub-seppir/caderno_de_debates.pdf/view
[1] Ilé da língua Yorúbá, literalmente: Casa. Moradia. Prédio.
[2] Nzo da língua Kimbundo, literalmente: Casa.
[3] Àbàsà da língua Yorùbá, literalmente: àbà (Casa com quintal. Fazenda. Sítio) + sà (Saudar. Invocar. Louvar).
[4] Egbé da língua Yorùbá, literalmente: Sociedade. Comunidade. Grupo. Associação.