OS NOVOS DA FOLIA da Baixada Fluminense
Por Ivan Machado*
Em 2015, produzi o PROJETO OS NOVOS DA FOLIA, com o objetivo de concentrar em um acervo de áudio, vídeo e iconografias, dados que subsidiassem pesquisas e ações do CENTRO DE CULTURA POPULAR DA BAIXADA FLUMINENSE, CCPBF. A ideia central do projeto à época era abordar as práticas das folias de reis na região da Baixada Fluminense, tendo como referência a atuação dos jovens foliões de Reis. Assim, o título apresenta a proposta do trabalho, tendo as crianças e jovens desses reisados como protagonistas, ainda que sob orientação de seus mestres e mestras mais velhos.
Com recursos do Fundo Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, o projeto foi executado através da exibição de 04 vídeos de curta metragem, abordando recortes de pesquisas feitas desde 2009, capturando aspectos peculiares a esse público em particular, tidos como de maior relevância à época. O primeiro vídeo, “Abertura”, tem caráter de apresentação tanto das ideias contidas no contexto histórico e antropológico das folias de reis, bem como justifica a relevância do projeto. O Segundo, “Crianças”, discute as relações de influência que motivam o engajamento dos pequenos foliões, ressaltando sua importância quanto a formação, renovação e preservação da folia de reis. O terceiro episódio, “Máscaras”, apresenta essa peça da indumentária do palhaço da folia, no contexto global de construção de um personagem, além de apresentar aspectos inerentes ao seu simbolismo no reisado. O último episódio, “Bateria”, coloca esse segmento musical no contexto dos cortejos culturais, abordando também as peculiaridades dentro do reisado, no sentido que a atuação de seus componentes obedece a critérios quase que litúrgicos, considerando que cada momento da chamada “saída” ou “giro” da folia contará com variações rítmicas bem específicas. Cabe observar que os vídeos contidos no projeto OS NOVOS DA FOLIA apresentam recortes temáticos que não dão conta da diversidade de aspectos, além da peculiaridade inerente a cada folia, no universo do reisado, que difere de região para região e até de um núcleo familiar em relação ao outro.
Ainda que curtos e em número de apenas quatro, aqueles vídeos de 2015 abrem uma discussão ainda insipiente, que é a relação de influência de parte a parte, no que concerne ao lugar desses “novos” em seu grupo cultural. No vídeo de abertura destaca-se o fato do reisado ser uma expressão popular tipicamente brasileira e, no que se refere ao nosso estado fluminense, é possível observar manifestações desses devotos nas dez regiões culturais de nosso estado. Percebi como mais relevante no contexto dos ritos e preceitos dos reisados é que, no que diz respeito à compreensão dos jovens sobre suas práticas enquanto foliões de reis, há uma clara compreensão de que ali existe uma solidária e respeitosa relação entre o sagrado e o profano. De igual modo notei que há uma cordial relação entre a matriz católica quanto a missão dos Reis em sua busca pelo Messias prometido e o protestantismo, por exemplo. Durante os cortejos é comum ouvir cantos como “Reunimos aqui só pra louvar o Senhor/ Novamente aqui em união/ Algo bom vai acontecer, algo bom Deus tem pra dar/ reunimos aqui só pra louvar o Senhor.
Para além desses cantos, que denotam aproximação com o neopentecostalismo, é possível ver que a Umbanda também abraça os reisados, como expressão litúrgica que cabe em sua forma de expressar a fé. Não apenas pelas guias expostas livremente no corpo dos jovens, mas também através dos versos dos palhaços foliões, que abrem suas apresentações com saudações diversas, incluindo às famílias que os recebem, bom como aos guias os orientam.
O segundo episódio inicia questionando o marco legal da educação artística, que tem o ensino de artes garantido pela LDB (Lei nº 9.394/96), que mantém a ideia de folclore no que se refere às nossas tradições populares que, no que se refere a figuras lendárias em nossas tradições populares, as colocam em uma condição de subalternidade, não permitindo nem mesmo o status de ícones de nossa mitologia brasileira. Ocorre que as folias de Reis trazem em seu contexto uma metodologia muito mais eficiente no que se refere à ideia de ensino e aprendizagem, por adotarem uma prática de constante envolvimento e proximidade das crianças em todos o processo de preparação de uma jornada dos Reis. Nesse sentido, as crianças envolvidas nesse processo de preparação, que em sua totalidade ocorre no núcleo familiar, se veem como parte integrante desse corpo cultural, se apropriando da possibilidade de escolha de seu lugar nessa estrutura, já em sua tenra idade.
Como foi dito anteriormente, cada bandeira ou estandarte de Reis identifica seu coletivo, o que serve de referência para o discurso dos mestres. Porém, há uma estética coletiva em cada grupo que, mesmo mudando ao longo do tempo, guarda traços identitários que os demais têm como legado. E é por isso que a farda de cada reisado trás em suas cores e formas o resumo de um discurso, que podemos notar em duas vertentes. Em primeira análise temos os mestres e músicos, mantenedores das cores de sua bandeira que se reflete nas fadas e quepes. É possível notar por exemplo que os mestres mais antigos optam por um figurino mais militarizado, com adorno nos quepes, quebrando assim a marcialidade das roupas sem, contudo, perder o ar e sobriedade. Por outro lado, vemos que os mestres mais jovens já aderiram às camisetas sintéticas, que possibilitam uma estamparia mais rebuscada, sobretudo em relação àquelas folias estabelecidas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, onde o acesso à tecnologia têxtil é bem mais acessível e onde a figura da costureira é menos presente.
A outra vertente é a dos palhaços que, por sua vez, se subdividem entre os brincantes ou acrobatas e o “verseiros”. As farda desses poetas no geral é mais elaborada, com resplendores de cabeça e babados cintilantes ou reluzentes nas fardas, ao passo que os brincantes optam por uma farda mais despojada e arejadas, de modo a facilitar os movimentos e diminuir os efeitos do calor externo. Em ambos os casos, porém, há uma peculiaridade entre os palhaços, que é o uso da máscara. Digna de exposições, como inclusive já foi promovida pela UERJ e consta em seu acervo permanente, as máscaras são peças artísticas que dão identidade a cada palhaço, criando assim uma persona que possibilita notoriedade sobre tudo aos jovens foliões, muitos deles abastecem canais próprios no youtube e páginas em redes sociais, através dos quais se expõem, muitas vezes salvaguardando suas identidades. Vale observar que muitos desses jovens são oriundos de comunidades de baixa renda e evitam, portanto, expor suas identidades em muitos casos. Diferente de alguns palhaços mais antigos, cujos indivíduos, segundo relatos de reiseiros mais velhos, aproveitavam os cortejos para fazer farra e até se embriagar, é a invisibilidade e a proteção da individualidade que os jovens priorizam, muito motivados pela violência do Estado.
O quarto episódio dá conta de outro elemento que entendemos ser importante para exibe as distinções territoriais, que é o ritmo. O cortejo realizado pelas folias de reis ilustra tanto a jornada dos reis na busca pelo Cristo nascido, quanto a ação dos soldados de Herodes, na busca pelo paradeiro da Sacra Família, daí o uso de instrumentos marcando os paços desses reiseiros. Ocorre que o ritmo executado durante os trajetos em via pública se distingue dos toques que acompanham as cantorias e rezas dos mestres que, por sua vez, também difere da chula executada durante a apresentação do palhaço da folia. Mais uma vez vale destacar que o toque executado nas regiões as quais chamamos de Interior, sofrem menor influência da música de massa, como ocorre em nossa Região Metropolitana, onde o pagode e o funk são trilha sonora constante nos locais onde vivem os jovens.
O que percebi com a produção dessa série de curtas metragens são as diversas mudanças que o mundo vem oferecendo à juventude, sejam elas em relação a mídias sociais, ou no tocante a moda no vestuário ou ainda em relação a tendências na música de massa, de fato interferem em suas vidas. Porém, tais interferências não são capazes de comprometer o vínculo profundo com as matrizes que levam crianças e jovens a se encantarem com a expressão cultural com a qual estão familiar e emocionalmente envolvidos. É um conjunto de simbolismos e vínculos em parte construídos e em parte mantidos, particularmente entre foliões de Reis, onde sabedoria e inovação não coexistem de forma conflitante, daí a riqueza de tais vínculos. São adolescentes e jovens que reproduzem com a mesma verdade tanto as rezas tradicionais quanto os versos de improviso, naturalmente postados no Instagram ou Tik Tok, colocando assim uma expressão centenária na vanguarda da comunicação de massa, agregando novos valores às nossas tradições populares.
Links dos curtas Os Novos da Folia 1 - Abertura, clique aqui
2 - Crianças, clique aqui
3 - Máscaras, clique aqui
4 - Baterias, clique aqui
*Ivan Machado é presidente do Centro de Cultura Popular da Baixada Fluminense. É graduado em História, especialista em arte-educador e Mestre em Educação pela EPSJV/FioCruz
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