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Patrimônio Imaterial, muito além da questão religiosa

Por Andre Bazzanella



Foto de Felipe Torres - Virada Cultural 2013

Este artigo surgiu quando tomei conhecimento do Projeto de Lei nº 3422/2020, apresentado pelo Deputado Estadual Márcio Canella (MDB- RJ), em 7 de dezembro de 2020, modifica a Lei Estadual n° 6459/2013, que regula o Patrimônio Cultural Imaterial Fluminense.


Resumidamente o projeto tem como objetivo expresso proibir o Registro de manifestações culturais religiosas e, ainda, excluir da lista de bens registrados, aqueles já protegidos e que remeteriam a aspectos religiosos presentes na cultura popular, como a festa de Iemanjá, a Folia de Reis, a Festa Popular de Cosme e Damião, a Procissão de Nossa Senhora do Atafona e os Tapetes de Sal do Corpus Christi de Cabo Frio.


O que sabemos sobre o Patrimônio Cultural Imaterial?

O site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional apresenta que o patrimônio intangível seria composto por aqueles bens, considerados como referências culturais, que dizem respeito “àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares que abrigam práticas culturais coletivas”. Não os trata, portanto, como bens que visam propagar ou difundir uma determinada fé, mas bens que resultam de práticas tradicionais que, sim, muitas vezes estão relacionadas com a religião popular a qual testemunham muitas vezes de forma sincrética, expressando valores de diversas crenças.

Por isso, a avaliação de um bem como patrimônio cultural imaterial não é determinada pelo seu significado religioso ou ideológico, mas pelo fato de ser uma construção transmitida oralmente de geração para geração que é constantemente recriada em função do tempo histórico em que ocorre, das técnicas, das relações estabelecidas com o ambiente humano e natural e que geram, pela sua continuidade um sentimento de pertencimento a uma temporalidade que supera o próprio momento e espaço em que é dado seu significado. Leva-se em consideração, como um dos atributos que permitem o Registro de um bem cultural, o tempo em que ele subsiste, nas mais diversas formas, em um grupo, constituindo-se em um fator estruturante de identidade e em um sistema de saberes, fazeres, lugares, ofícios, memórias, que integram o sentimento de pertencimento ao presente, ao passado e à esperança no futuro.


Provavelmente é certo dizer que a maioria das manifestações populares origina-se em torno de uma comunidade e que muitas delas desaparecem, mas que outras crescem, por razões diversas, expandindo seus limites até tornarem-se estruturas que organizam não somente o tempo, mas as relações sociais e o espaço simbólico, dando sentido ao lugar em que se habita. Então, religiosas ou não, estas manifestações são estruturantes do próprio sentido dado à humanidade a partir de um ponto de vista particular, como um grupo que habita um determinado espaço e com ele relaciona-se através de um tempo no qual o presente dilui-se em um passado constituído por memórias, experiências vividas e imaginação que reforçam relações essenciais e genéricas que permitem a constituição de uma sociedade. Assim, fazer sobressair somente os aspectos religiosos (ou quaisquer outros) de uma manifestação em detrimento de seu reconhecimento como espaço e tempo de reconstrução dos laços simbólicos de uma comunidade, seria trabalhar no sentido de destruição da própria sociedade que se quer, em princípio, valorizar.


O que se registra, portanto, não é o valor religioso de uma manifestação, mas seu aspecto de participação e pertencimento no tempo, dando à sociedade que se transforma a noção de temporalidade e duração, sem as quais não poderia haver sequer consciência da própria individualidade.


O Registro, assim como o Tombamento são conquistas construídas justamente para garantir, nas sociedades que se secularizam e constroem seus tempos linearmente em direção à transformação e ao futuro, a ideia de pertencimento; construções que permitem justamente construir a mudança com a permanência de um sentimento de continuidade que, antes da modernidade, era emprestado a uma metafísica supranatural que organizava o mundo em uma continuidade atemporal e supra-humana.


Na modernidade, o tempo substitui o sagrado como organizador do espaço e da vida. No patrimônio a duração organiza o lugar do indivíduo e dos grupos no tempo; tornando palpável a continuidade dos testemunhos dos que nos antecederam e que nos sucederão e cujas ausências nos fazem mais presentes frente à própria consciência de nossa finitude. São essas ausências, cujas marcas fazem o momento existencial de seus autores presente, que nos dão a consciência de nossa própria presença e possibilidade de nossa própria ausência como parte de um sistema que remete diretamente à existência e ao seu testemunho como parte de um ciclo de devires e esforços de significação interrompidos pelo tempo; mas que continua ao nos apropriamos deles através de nossa projeção, a partir do presente, nos fragmentos de memórias que logramos fazer permanecer. É essa relação dialógica entre presenças e ausências ao longo do tempo que dá sentido vital ao patrimônio cultural.


Não reconhecer o papel da representação simbólica como elemento aglutinador, seja ela religiosa, política, ideológica, é, portanto, não reconhecer a necessidade de significação e religação a uma totalidade em que nos inserimos, mas que sentimos como algo que nos supera (podendo ser esta totalidade entendida como manifestação do sagrado, como sentimento profano, como razão, como a bondade ou a maldade humana, como as ideias de progresso e atraso ou qualquer outra manifestação metafísica que tente dar sentido ao mundo, às coisas e a nós mesmos) e que nos acompanha ao longo de nossa jornada pela terra e que nos permite estabelecer uma base comum de igualdade entre os indivíduos e os povos. Todo indivíduo em qualquer lugar da Terra e em qualquer tempo, tem a necessidade de significar e expressar seus significados no mundo e transformá-lo (materialmente ou não) a partir disto. A necessidade de significar, a diversidade que decorre de tal capacidade, e a consciência dialógica entre as ausências e a presença do ser no mundo, nos dá o sentido inequívoco de igualdade entre os homens.


Não podemos considerar, portanto, que a preservação da diversidade religiosa através do Registro, sua exposição e valoração, seja algo intrinsecamente conectada a uma determinada fé, ou que se destine a qualquer tipo de proselitismo que ameace outras crenças, religiosas ou não. Ao contrário, preservar essas diferenças, expô-las e valorá-las, independente de seu caráter, é distinguir a nossa própria condição humana como espécie que, por ter consciência de sua passagem, precisa significar a Vida.


Andre Bazzanella - Mestre em História da Arte, com concentração em Antropologia da Arte, pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999) e Doutor em Ciências Sociais em Agricultura Desenvolvimento e Sociedade pelo CPDA da UFRRJ (2013).






Trecho do Projeto de Lei n° 3422/2020, apresentado pelo Deputado Estadual Márcio Canella (MDB - RJ), em 7 de dezembro de 2020, modifica a Lei Estadual n° 6459/2013, que regula o Patrimônio Cultural Imaterial Fluminense, para proibir o registro das manifestações culturais religiosas:

§ 4º – Fica vedada a inclusão como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Rio de Janeiro de qualquer religião, credo, culto, liturgia, dogma ou outras formas de expressão com viés religioso, tais como manifestações públicas ou privadas, saberes e conhecimentos, reuniões, festas, celebrações e modos de criar, fazer e viver, os quais, de alguma forma, divulguem ou integrem os princípios de fé de qualquer credo religioso, bem como de objetos e locais de cultos ou adoração, de livros ou quaisquer outras publicações religiosas, de personagens e personalidades fictícios ou reais atrelados ou vinculados à religião, de divindades, mitos ou outras entidades que sejam objetos de culto ou adoração, de quaisquer meios de propagação e divulgação de credos, contos, dogmas, história e cultura de qualquer religião, e de todos os bens e formas de expressão integrantes de qualquer credo religioso ou que a ele se vincule, ainda que indiretamente." O projeto exclui ainda as manifestações religiosas já reconhecidas pelo Estado do Rio de Janeiro: "


§ 5º – Os bens com viés religioso já arrolados como Patrimônio Imaterial serão automaticamente revogados e excluídos desta condição a partir da publicação da Lei que criou tal restrição".


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