Intolerância Religiosa – O outro nome do Racismo
Professor da Escola de Museologia da UNIRIO, Mario de Souza Chagas se define como poeta, museólogo, gestor, cientista social e letrista. Seu trabalho como educador e divulgador da Museologia Social é conhecido e respeitado por pesquisadores e gestores de museus comunitários e tradicionais no Brasil e no mundo. Hoje, ele é o diretor do Museu da República, no Rio de Janeiro.
O Museu da República, construído na metade do século 19, foi o símbolo do poder econômico da elite cafeicultora escravocrata do Brasil. Em 1896, o Palácio foi adquirido pelo Governo Federal para sediar a Presidência da República. Além dos presidentes que governaram desse local, também hospedou-se o Papa Pio XII, em 1934. Em setembro de 2020, o Museu da República recebeu o acervo com mais de 500 objetos sagrados de religiões de matriz africana que foram apreendidas entre o fim do século 19 e meados do século 20, pela Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Nessa série de entrevistas sobre Intolerância Religiosa – O outro nome do Racismo, iniciada com a denúncia sobre o vandalismo e roubo praticado no início de 2021, no Centro Cultural Fazenda Roseira, em Campinas, SP, a opinião do professor e diretor Mario Chagas, responsável pela guarda e exposição desse acervo, é muito importante para entendermos que a História pode ser outra. Segue a entrevista com o professor Mario Chagas
Comunicação FCPT: O Brasil é um país que se diz cordial mas que persegue os integrantes das religiões não cristãs. Quais os motivos que levam a sociedade brasileira a esse tipo de perseguição.
Mario Chagas: Em primeiro lugar, vamos esclarecer que existe uma narrativa ufanista que busca afirmar que o Brasil é cordial. Essa "cordialidade" não leva em conta a nossa diversidade e tende a dar unicidade à sociedade. Nesses últimos tempos estamos assistindo na prática, de forma sistemática, uma sociedade que explora o homem pelo homem, a mulher pelo homem, a mulher pela mulher… Eu digo que o Brasil não é um país cordial. O que vemos, ao longo de séculos no nosso país, é um sistema de expropriação que tem correspondência no sistema escravocrata que atravessou a nossa História, desde a colonização até o final do século 19. O sistema escravista se entranhou na sociedade brasileira e não está sendo fácil nos livrarmos dele.
Gostaria de ponderar que a cordialidade, a solidariedade, o amor, a amizade ou a parceria não são naturais. Elas são construções sociais. Elas não estão garantidas e dependem de acordos diários. E por quê a sociedade brasileira em que muitos se afirmam na tradição e fé cristã – católicos, evangélicos e protestantes, que na sua origem teve seus discípulos perseguidos, perseguem pessoas que não professam da mesma crença? Porque a fé cristã, ao longo de sua Historia, também exerceu a perseguição. Basta lembrar os processos da Inquisição. No Brasil também ocorreram processos da Inquisição que perseguiram quem não estava submetido aos dogmas cristãos. Perseguições contra as religiões de matriz africanas, brasileiras, budistas, indígenas, xamanismo, muçulmana e até contra judeus. O Integralismo, a versão do fascismo no país, combateu os judeus.
A Baixada Fluminense, por exemplo, têm seus Terreiros, Roças de Candomblé e Umbanda invadidos e seus praticantes assediados ainda hoje. A Constituição brasileira garante a liberdade religiosa mas o Poder Público não atua no combate rigoroso contra esses grupos de pessoas ou de organizações criminosas, como o tráfico e a milícia, no caso do Rio de Janeiro.
O Poder Público deveria estimular o amor, a solidariedade, a amizade, a cordialidade e construir uma sociedade baseada nesses valores. Mas atualmente a sociedade está dividida e sem enfrentamento não poderemos resolver problemas antigos como o racismo estrutural, o racismo religioso, a perseguição aos indígenas, aos quilombolas, aos ribeirinhos, aos ativistas do meio ambiente, e mais recentemente, a perseguição aos LGBTQ+. Fica a pergunta cuja resposta vale o nosso Futuro: de que modo vamos enfrentar essa tendência supremacista de afirmação do macho branco no comando, como diria Caetano Veloso?
Comunicação FCPT: O Museu da República abriga hoje o acervo do museu da Polícia Civil, como a instituição pretende fazer o educativo dessa exposição?
Mario Chagas: No dia 21 de setembro de 2020, o Museu da República recebeu o acervo de 519 objetos sagrados que pertenciam ao Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro. O acervo é fruto de apreensões realizadas pela polícia entre o final do século 19, a partir de 1889 até 1945, metade do século 20.
Durante 30 anos o povo dos Terreiros reivindicou esse conjunto mas somente nos últimos anos, e com o início da campanha #LibertemNossoSagrado, em 2017, focou em retirar das mãos da Polícia Civil os 519 objetos sagrados. Fui procurado em 2018, já como diretor do Museu da República, por lideranças dos Povos de Terreiros para que o museu o recebesse. A única exigência era que pudéssemos fazer uma gestão compartilhada desse acervo. E assim foi!
Mãe Meninazinha de Oxum, que é a principal liderança nessa luta, avalia que o dia 21 de setembro é o Dia da Libertação do Sagrado.
Esse acervo já passou por uma quarentena, observamos se havia algum dano e infestação de fungos ou cupins, e 90% já está acondicionado em gavetas, mapotecas e armários deslizantes. Os outros 10% apresentou algum problema e será restaurado. Agora, em 2021, é que vamos pensar numa exposição. O objetivo é chegar em novembro de 2021 com uma exposição bem montada no Palácio do Catete. O Palácio do Catete foi sede da Presidência da República de 1897 até 1960, no período de apreensão desses objetos sagrados. Essa exposição reveste-se de um caráter simbólico muito importante.
O equipe do Museu da República já está trabalhando no projeto educativo sobre o Nosso Sagrado. Ele não ficará restrito ao espaço do museu, os kits educativos devem chegar aos professores e estudantes. Na produção desse material estamos utilizando o conceito da ecologia de saberes, como diria o Prof. Boaventura de Souza Santos. O material está sendo construído com a parceria e a orientação das lideranças do Candomblé e da Umbanda. Estamos construindo esse educativo de forma solidária e participativa, que leva em conta os múltiplos saberes dos envolvidos. A Mãe Meninazinha de Oxum vem pedindo a edição de livros a partir desse acervo, vamos nessa pista!
Queremos que essa exposição faça sentido para professores, alunos da rede pública e privada, para o Museu da República e para o Brasil.
Comunicação FCPT: Quais seriam as boas ações do Poder Público para diminuir essa intolerância religiosa no Brasil?
Mario Chagas: Primeiro, o Poder Público precisa ser ativo e atuante contra todas as práticas de intolerância religiosa, de desrespeito às diferenças religiosas e de perseguição religiosa. Essas formas de racismo precisam ser combatidas rigorosamente, exemplarmente pelo Poder Público. Eh preciso respeitar a Constituição de 1988, onde está prevista a Liberdade Religiosa. O Estado brasileiro é laico e essa laicidade precisa ser protegida. Resumo a minha resposta nesses termos: não são necessárias muitas ações mas uma ação decidida no combate à intolerância, ao racismo e à perseguição religiosa.
Comunicação FCPT: Para o Sr. o que é ser religioso? Mario Chagas: Eu não tenho uma religião mas tenho religiosidade. No meu entender ser religioso é ter a capacidade de amar, de ser amigo, de me solidarizar e alcançar a potência da cordialidade. Ser religioso é exercer a religação com a Natureza, com o outro, consigo mesmo…. Restabelecendo essas ligações, no meu entendimento, abrimos uma dimensão especial com as religiões. Compreendo a religiosidade no Sol, no Mar, nos outros… A minha religiosidade é pela Vida!
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